INÁCIO AMORIM - PRESO EM SUA REDE - Conheça um pouco da história
Inácio é o típico nordestino parrudo, bruto, grosseirão e gostoso. Pescador e
analfabeto não faz a linha engravatado, o negócio dele é o mar, andar de pés
descalços, sem camisa, e protetor solar também. Tudo o que almeja na vida é
formar uma família e permanecer ali naquele seu "pequeno lar". A ilha
de Santa Clara, praia paradisíaca, preservada, e até certo ponto nada
acolhedora. Tirando os moradores, o lugar recebe visitas previamente
autorizadas por ele. Nácio sabe como funciona o turismo em Alagoas, e a especulação
imobiliária, não deixaria que acontecesse com sua casa, o mesmo que aconteceu
com as demais ilhas da região, não era bobo. Os urubus engravatados os rodeavam
tinha muito tempo, bom que ele já estava calejado.
Só não esperava que Ana
Júlia, CEO da Mermaid Resorts, pousasse ali com a ganância exalando de seus
poros. O cheiro desses abutres já era um aroma familiar pra ele, e a executiva
linha dura perdia muito tempo se enchendo de perfume caro na tentativa de
mascará-lo... Nácio sentia de longe. Tanto o cheirinho importado, quanto a
podridão... junto com o charme, os cabelos negros cumpridos, quadris largos,
era uma sereia, a diaba bonita e endinheirada!
Mas mal sabia Júlia que nenhum
dinheiro no mundo compraria aquele lar, aquele paraíso. Se ela quisesse ficar, ia
ter que deixar a grana pra fora! Será que ela desistiria? Fácil não seria
porque mesmo faltando na leitura das palavras por aí, aquele bendito pescador
pobretão sabia muito ler outras coisas. Pessoas, corpos, olhares e corações.
Confira a sinopse oficial do
livro:
Inácio Amorim não sabia ler, mas
não era burro. Nunca foi. O pescador era em si tão calejado quanto suas mãos,
sabia que aqueles engravatados não seriam os últimos a tentarem comprar Santa
Clara, seu lar, seu pequeno paraíso. E mesmo não sabendo ler, ele era capaz de
ler coisas mais importantes do que documentos, ele lia pessoas. Sabia que
aquela dondoca desbocada era mais um urubu rodeando seu lugar.Inácio jamais
cederá sua casa, e sua família não está à venda.
Júlia é empresária do ramo
imobiliário, que quer algo diferente para a rede paulistana Mermaidy Resorts.
Ela queria um projeto mais brando, algo com simplicidade e rústico, nada que
seus resorts luxuosos ofereciam até então. Uma pousada cinco estrelas era uma
boa pedida, e ela já tinha um lugar especial em mente: A ilha de Santa Clara em
Alagoas, lugar que pedia exatamente algo mais simplista. Ela já tinha um plano:
comprar, construir e levar a Mermaidy Resort para fora do Brasil.
Júlia sempre consegue tudo o que
quer.
Um pescador que protege o seu lar
com a sua vida, e se sente satisfeito com um belo pôr-do-sol no fim do dia. E
uma ambiciosa CEO decidida à conquistar um paraíso que nunca teve preço. Duas
almas completamente diferentes, mas com ligações inexplicáveis. Um romance que
têm tudo para dar errado, e dessa vez vai dar... se o amor não vier a nado e a
sereia não ficar presa em sua rede.
Deguste o primeiro capítulo:
INÁCIO
"Você sabe o quanto o dinheiro é insignificante
quando você passou por pelo menos três dessas situações: Você já teve muito e
viu que a felicidade não bateu na sua porta como você esperava ou imaginava.
Você, mesmo com tanto dinheiro, não conseguiu ajudar ou salvar a vida de quem
você amava. Você notou que quanto mais trabalhava e mais ganhava, menos vivia.
Você ganhava tão rápido quanto perdia. Você destruiu algo ou alguém por causa
dele. Você empacou quando a montanha de grana se tornou barreiras no meio do
caminho e com isso você se perdeu. Você viu pessoas que te odiavam dizerem te
amar quando você sabia que não era verdade... Ou simplesmente percebeu que não
importava o quanto tivesse, aquela pessoa não te queria em sua vida com ou sem
ele. Pobre ou rico, você era você sem tirar nem pôr."
São
Paulo, 21 de Maio de 2018. 14:26h
Mermaidy
Resorts
Boa
tarde, senhor Amorim. Sou Anália Junqueira, diretora comercial da Mermaidy
Resorts, a maior rede hoteleira do país atualmente. Tentei encontrar seu CNPJ e
entrar em contato por telefone com a companhia Amorim Pescados e não obtive
respostas. Gostaria, então, de agendar uma reunião de negócios pessoalmente em
Alagoas para tratarmos de propostas referentes ao projeto Mermaidy já
apoiado pela secretaria de turismo da capital alagoana há cerca de três meses,
documentos esses que não nos foram repassados com as devidas assinaturas.
Podemos agendar uma data com o senhor, seus advogados, ou um funcionário
responsável?
Aguardo
um retorno.
Anália
Junqueira
GERENTE
COMERCIAL
comercial@mermaidyresorts.com.br
www.mermaidyresorts.com.br
+551199664-5587
Lora
lê em voz alta o e-mail que recebemos há dias e eu não abri, e me analisa
enquanto eu abria a marmita que me havia trazido.
- O
quê? - indago ao me jogar pesadamente no pequeno sofá do escritório. Seu olhar
para cima de mim era de curiosidade.
- O
que eu respondo?
-
Manda esse povo pra baixa da égua!
-
Você tem que responder alguma coisa, Inácio! Se entrarem com um recurso contra
a gente, eles ganham. Eles têm bons advogados, homem. Você precisa pelo menos
aceitar a visita, a secretaria de turismo está do lado deles, já faz muito
tempo que querem mexer na ilha, lucrar com isso aqui... Ignorar os e-mails não
vai nos proteger contra eles. A gente precisa pensar no que fazer para nos
resguardar, contratar alguém, não sei...
- As
cartas estão aí. - Eu falo após mastigar e ela pega o punhado de
correspondências amassadas. - Leve-as para os moradores. Dona Rute vai amar
saber que seus artesanatos serão vendidos aqui mesmo, e não no Porto. - Ela
revira os olhos à minha ironia. - Basta eles assinarem, e no dia seguinte eles
estão aqui com os navios e com todas as suas tralhas para derrubar essas
árvores e jogar o entulho no mar, mas o turismo, ó... - Beijo a ponta dos
dedos. - Será um sucesso! Sem contar que você ia amar pegar o dinheiro que eles
querem nos pagar e dar uma de dondoca nos saltos lá na capital.
- Ah,
deixe de leseira homem!
-
Apenas não responda, ora essa... O que eu vou dizer!? Nada foi assinado, sem
isso eles não podem pisar aqui, te garanto. Nós precisamos concordar para essas
obras acontecerem, e nós não iremos concordar com isso nunca, visse? O que
responder!? Bota uns palavrões aí e está tudo certo - falo mastigando para não
perder tempo e então esqueço o assunto.
Não
era a primeira vez que eu recebia um e-mail como aquele, e sabia que não seria
a última. Todos os meus ancestrais povoaram aquela ilha, ali éramos uma família.
Eu sabia que existiam leis que nos protegiam, uma lei específica que me dava
plenos poderes, e era por isso que cada ano que passava mais documentos
chegavam para eu assinar. Com meu nome naqueles papéis, seríamos enxotados
daqui no dia seguinte, e foi exatamente por nunca assinar que aquela ilha
continuava apenas nosso lar e nada mais.
- Tá
no seu pescoço ainda? - Simas joga a cabeça em direção ao escritório assim que
eu me aproximo do barco.
Lora
parou na porta e ficou me secando. Me olhava como se quisesse me devorar.
-
Avalie! - resmungo e ele ri. - Tá é carente. Quando Cristiano voltar ela se
aquieta. Rapidinho abaixa o fogo.
- Se
dependesse da aldeia, o cabra não pisava mais aqui, só permaneceu porque tu
deixaste.
-
Simas, só com o desprezo que a aldeia toda tem por ele, ele já paga o que fez
comigo. Vambora- digo para encerrar
o assunto, subo na traineira e ele repete meu gesto, assentindo.
-
Tarde, Pedro! - cumprimento o fanfarrão que já estava no barco e ele sorri.
Pedro era mudo desde que nasceu, ou pelo menos desde que eu me lembrava porque,
afinal, nunca o vi falando. Por isso apenas toca a boca com os dedos fechados e
abaixa a mão, me respondendo 'boa tarde' em libras. Devia ter uns vinte e sete
anos, era um bom rapaz, de boa família, bom amigo e ótimo pescador.
Já
Simas tinha seus quarenta e seis anos, dia sim dia não socava suas rabugices goela abaixo de qualquer um
que o atazanasse, apesar de que de velho ele só tinha a barba que nunca aparava
e, assim como eu, havia nascido, crescido e com certeza morreria naquela ilha.
Dona
Neide, a moradora mais velha e nossa "enfermeira" ou
"curandeira"- porém mais inteira que muitos jovens por aí -, me
contara uma vez a respeito de meus pais, há muito tempo. Meus velhos se casaram
aqui e namoravam desde jovens, a história deles era tão bonita - na versão que
ela contava - que eu achei que teria uma história igual com Lora. Minha mãe
morreu de ataque do coração, era o que ela disse uma vez, e meu pai se foi
depois, do mesmo modo - só essa história que era bem mal contada, mas eu ouvia
sua versão romântica e assentia. Dona Neide gostava de mim como gostava de seus
netos, ela só mentia por me amar. Os dois lutaram demais pela ilha e por nossa
independência. Graças a eles nos mantivemos isolados e protegidos do controle
da capital por anos, era o que ela dizia, e quando eles se foram, Seu Noronha
assumiu a liderança, melhor amigo da minha mãe, hoje acamado devido à velhice.
Acho que tínhamos uns três anos, por isso eu não me lembrava de nada, mas Dona
Neide dizia uma idade diferente cada vez que eu pedia pra ela contar nossa
história.
Com
Simas a história não foi muito diferente, foi pior. Perdera os pais ainda muito
menino, mas também não tivera somente essa perda na vida. Sua esposa e filha
faleceram nesse marzão em uma época em que a aldeia fazia uso de balsa para
mandar os pequenos para a escola em Alagoas. Apesar de que por não encontrarmos
o corpo da menina, ele ainda esperava por ela. Estavam todas as crianças
maiores da aldeia e suas mães preparadas para irem à escola; a mulher de Simas
e a pequena, que pegaram uma carona para levá-la ao pediatra no centro; e
inclusive Lora e seus pais, que se foram na tragédia também. Obviamente eles
sabiam nadar, no entanto ficaram presos de algum modo nos escombros e praticamente
amarrados pelas cordas. Morreram afogados.
Desde
então, conseguimos uma professora para dar aulas aqui (a última precisou se
mudar de Alagoas, por isso contratamos outra) e montamos uma escola para
atender a todas as crianças; desse modo muitos adultos que queriam se
alfabetizar participavam também. Assim que cada pequenino chegasse à idade de
ir pro ensino fundamental, aí liberávamos a escuna para fazer os transportes
dos mesmos. Já maiores, o perigo era menor, todos eles nadavam bem e ainda assim
faziam o trajeto com a devida segurança. Balsa nunca mais!
Na
traineira éramos os três; na lancha de apoio, eram Tico e Roger.
-
EHHH, FARRAPÃO! - Roger grita enquanto navegava ao nosso lado após sair do
outro ponto da ilha. Após o almoço, meio-dia, nós saíamos para a segunda rodada
umas duas vezes no mês, para a pesca de manjubas. - SENHORITA TRASEIRO FICOU TE
ESPERANDO ONTEM! - Ele fala de uma das professoras dos pequenos, senhorita
Cristine Travado. Esse era o nome dela, mas ele passou a chamá-la de "Traseiro"
após ver a professora tomando banho de mar com as crianças, num sábado
ensolarado.
Nesse
dia, eu a levei de traineira até o porto, eram umas 7:30 da noite, fomos
conversando e pelo jeito ela gostou de mim. Mandou recado pelo Roger dizendo
que queria almoçar comigo na sua pausa das aulas, no dia seguinte, contudo
esqueci e só me lembrei agora que ele acabara de gritar.
- EU
ESQUECI. VOU FALAR COM ELA. - Grito de volta e ele ri negando.
- VAI
PERDER... - Volta a gritar e faz gestos obscenos indicando o que eu perdi.
Eu
poderia dizer "Fique com ela pra você", porém nem poderia. Roger
gostava mesmo é de Lora, e todo mundo sabia disso. Ele não tem coragem de dizer
por medo de ser rejeitado pela quenga, e também tinha medo de ser zoado e levar gaia por sua fama. Apesar de que todo
mundo sabia também que apesar dos sentimentos dos dois - o dela por mim e o
dele por Lora -, Roger e a senhorita Travado trepavam sempre após o almoço.
Como eram dois adultos que nem se levavam a sério, eu não me importava.
Assim
que atingimos o ponto certo em alto-mar, manobro a traineira para meia-volta
enquanto Roger e Tico fazem o mesmo.
- UM.
- Ouço Simas gritar indicando que havia soltado ao mar um metro de rede
(traina) e, enquanto fazia isso, da popa, eu podia ver Pedro soltando os pesos
para a rede descer, sem isso o punhado imenso de fios de náilon não atingiria a
profundidade correta no tempo esperado. - DOIS. - Rapidamente se foram dois
metros. Mantenho a velocidade, vejo Tico e Roger, que seguravam a ponta da rede
que Simas jogara ao mar antes de nos separarmos, seguindo o caminho a fim de
nos encontrarmos alguns metros à frente, e prossigo. - VINTE E SETE. - Simas
grita minutos depois e eu sei que preciso diminuir a velocidade, e não só por
isso, dali já podia ver que estávamos chegando à lancha de Roger, daquele modo
fechávamos o cerco das sardinhas em um círculo perfeito, e depois, como a pesca
era artesanal, o trabalho era braçal; a puxada era na raça.
Desligo
o motor do barco, mas deixo o motor da traina ligado para ir até a proa. Nós
três puxaríamos dali com a ajuda do motor que mais servia para não deixar a
traina acumular no convés do que ajudava na força.
Em
uma hora finalizamos todo o protocolo. Braçal do mar até a proa, sardinha nos
isopores, traina enrolada, barco manobrado em direção ao cais e chegando ao
destino: isopores pesados nos ombros, e por último, mas não menos importante, a
tão esperada venda de sempre. Tínhamos os clientes fixos, e cada barraca que
era montada lá, comerciante novo que chegava, a maioria nos procurava. Nosso
respeito à natureza e a qualidade com os serviços eram bem faladas pelo
mercadão. As redes das pescas industriais tiravam do mar não só as sardinhas
ideais ao consumo, mas também os filhotes e as mais gordas, que tinham um índice
grande demais de gordura - sem contar o excesso de pesca, que era totalmente
prejudicial ao meio ambiente. Agora, Amorim Pescados era o oposto e nossa
traina só tirava do mar os peixes prontos para o abate.
Houve
um tempo, assim que Seu Noronha e os pescadores já mais velhos adoeceram, a
ilha perdeu alguns barcos por causa da "aposentadoria" dos amigos
pescadores, e depois de alguns anos, já amadurecido na idade e na ideia, eu
decidi recomeçar o negócio com o dinheiro que minha mãe nos deixou. Na época eram
uns quarenta mil, na crise que estamos agora não é nada, entretanto naquela
ocasião era mais do que precisávamos, era um bom dinheiro. Chamei meus amigos,
meu irmão, o velho Simas, o mais experiente, e juntos voltamos a trazer verba
para a ilha. E além de verba, alimento, emprego, remédios específicos e daí por
diante.
- Tem
uma dondoca lá no Seu Tião esperando por você. - A menina Ellen, filha de um
comerciante do porto, um cliente fixo, me recebe como sempre recebia os
pescadores que ela mais gostava: com uma garrafa de cerveja nas mãos. Quando
estava frio, uma xícara de café bem quente ou pinga de cana artesanal era o que
ela oferecia.
- É
empresária, é!? - Abro a garrafinha na mão e ela afirma. - Já pedi que não
dissesse nada a nosso respeito. O que ela quer? O que disse a ela?
- Eu
só a mandei esperar, e só fiz isso porque não é a primeira vez que ela está
aqui te chamando pelo nome. Essa mulher está hospedada em Alagoas, Nácio, vem
aqui todos os dias vai fazer cinco dias. É uma grosseira amostrada. Já disse
que não vai parar de vir porque fica te mandando e-mail e você não responde.
Acho que é melhor ver logo o que ela quer.
- Eu
sei o que ela quer. Ela quer tomar a aldeia de Santa Clara para construir um
monte de prédio, é isso o que ela quer. Eu vou lá. - Digo, a pequenina assente,
e eu sigo um caminho reto até a cachaçaria um tanto chique de Seu Tião.
O bar
vendia as melhores pingas nordestinas de todo tipo do mercadão, e Dona Rosália,
sua esposa, fazia os melhores quitutes para degustar com as bebidas, e para
isso tinha até mesinhas aconchegantes. Como era um estabelecimento confortável
e dava direto pra porta da rua, geralmente todo mundo parava lá ao sair ou ao
entrar.
A
mulher vestia branco, uma saia justa até o joelho e aqueles terninhos de
executiva que tem aos montes em filmes pornôs. Tudo tão branco que parecia até
médica. Era galega, seus fios dourados eram curtinhos, lisos, e seu nariz
bastante proporcional, mas não era feia não, era bonita até. Claro que sua
roupa a deixava mais velha do que ela deveria ser, mas era bem bonita...
Me
sento ao seu lado no balcão, Seu Tião me vê, no entanto não fala nada, bebo um
gole grande da cerveja e respiro fundo. Era preciso muita coragem e paciência
para não mandar aquela mulher pro quinto dos infernos sem nem deixá-la me dar
um 'boa tarde'.
- Me
procurando, dona? - Murmuro e ela pula, quase cai da cadeira. Claro, estava
pendurada no celular.
- Meu
Deus! - Coloca a mão no coração, e eu evito revirar os olhos. Eu não era de
todo ruim, ia dar uma chance de ela me dizer 'boa tarde'. - De onde você veio?
-
Quer falar comigo ou posso zarpar?
-
Inácio Amorim? - Inclina a cabeça branca levemente.
- O
próprio.
- Sou
Anália Junqueira, te mandei alguns e-mails durante toda a semana, nos últimos
seis meses. - Diz levantando uma sobrancelha.
- E
daí?
- O
senhor ao menos os leu?
-
Obviamente que não, ora essa.
-
Acha que pode nos ignorar para sempre?
- Eu
vou tentar, isso é certeza.
- Nós
temos a lei do nosso lado, senhor Amorim.
- Se
tivessem mesmo, não estariam insistindo tanto, já teriam baixado na costa da
ilha com seus trambolhos. Minha resposta é não, senhorita Amélia.
- É
Anália. Escuta... - Murmura quando eu me levanto. - Pode, por favor, me ouvir?
Só me ouvir!? Nós da Mermaidy Resorts temos conhecimento de seu caráter, de
seus princípios, principalmente com relação a toda a sua preocupação com o meio
ambiente... e... - A mulher vai falando no aperreio. Enquanto eu andava, ela
corria. - É também nossa política mais importante. Nossos resorts preservam
áreas ambientais e... por favor... senhor Amorim...
-
Vocês podem ser o que for, dona. Ninguém vai tomar a minha ilha.
- A
ilha não é tua...
- E
ela com certeza não será de vocês.
-
Temos a autorização relacionada a...
- Mas
não tem o principal: o meu sim.
-
Como consegue ser tão burro? É sério. Já entendi que você tem um apego
sentimental aí - diz aquilo com desdém e eu olho ao redor. A mulher que latia
como uma cadela brava já chamara a atenção de alguns pescadores e comerciantes
próximos a nós -, mas como não pode sequer pensar no bem que isso pode trazer
para a população local!? Estou falando de emprego, ótimos salários, água
encanada, saneamento básico, energia, dinheiro circulando nas mãos dos próprios
moradores, mesmo porque eu sei que vocês têm artesões magníficos, telefone,
internet... Vocês vão parar de viver como homens das cavernas e vão
principalmente parar de passar horas carregando sardinha na cabeça, o turismo
será a solução...
-
Então é isso o que vocês pensam. - Eu dou uma risada nervosa e ela gagueja. -
Que somos selvagens sem água encanada? Como conseguiu nosso e-mail? Viu que no
site da empresa tem e-mail de contato, imaginou que trabalhávamos em alguma
lanhouse e não tínhamos saneamento ou eletricidade!? A senhorita é uma mula ou
é só preconceituosa? - Fico irritado, ela gagueja um pouco mais, os pescadores
gritam em zombaria e eu me seguro, e por me segurar ofereço-lhe as minhas
costas.
-
Senhor Amorim, por favor, eu não quis ofender... - Volta a me seguir
desesperada.
-
Diga para seus superiores que minha resposta é não, senhorita Amélia.
- É
A-ná-lia, e eu vou perder o meu emprego... - diz choramingando e eu travo.
Nunca gostei de ver mulher chorando, podia ser quem fosse. - Vou perder meu
emprego se eu chegar lá sem uma resposta positiva, por favor, eu tenho três
meninas! Três filhas! Ela vai arrancar minha cabeça fora, senhor Amorim.
-
Valei-me! Ela quem?
-
Minha chefe. Ela está furiosa, disse que eu nem precisava voltar se não
conseguisse ao menos conversar com o senhor. Eu estou nesse porto há dias
implorando para alguém me dar informações suas.
- Mas
a senhorita conseguiu.
- O
senhor nem me deixou falar.
-
Diga que deixei, escutei pacientemente e a resposta...
-
...É não, ok. Você não cansa? - Ela se invoca de novo e eu volto a caminhar em
direção à traineira branca. - Ela tem uma carta na manga, senhor Amorim,
enquanto o senhor não respondia, ela consultava os melhores advogados que
podia, e ainda está fazendo isso. É melhor pro senhor, além não de bater de
frente, ficar aberto a negociações. Pode tirar um bom dinheiro disso, uma casa
maravilhosa para morar na ilha ou em qualquer lugar do país, aumentar a frota
de seus barcos. O senhor pode ficar rico! - Diz aquilo praticamente gritando e
eu lamento muito. O ar chegou a ficar rarefeito quando ela disse a palavra
'rico', todo mundo ouviu. O que tinha de pescador se equilibrando em corda
bamba todo mês não era brincadeira não, obviamente aquela palavra chamaria a
atenção de quem quer que ouvisse.
-
Agora pronto! A senhorita Amélia parou de chorar rapidinho, hein!? - Me
aproximo e ela dá um passo para trás. - Faz um favor? Diga pra essa sua chefe,
qual é o nome dela!?
-
Júlia.
-
Júlia, isso, diga pra ela continuar... O que ela faz mesmo?
-
Senhor Amorim...
-
Diga pra ela continuar brincando de casinha, cuidando de hotel de luxo lá na
baixa da égua e que esqueça Santa Clara. Se ela tiver cacife pra parar de mandar
e-mail e vir me peitar, melhor ainda, lhe darei uma pisa que ela vai sair daqui
com um quente e dois fervendo! Que é o que eu vou fazer contigo se tu não
correr em dois tempos!
-
Grosseirão ignorante! - Rosna raivosa.
- Tu
não viste nada ainda, Dona Amélia!
- É
A-NÁ-LIA! Ogro!
-
Quem é a doutora? - Simas permanece fitando a dondoca que se abraçava
estressada e me fuzilava com os olhos, assim que pulei pro barco. Estava
ventando muito, ali ventava mesmo. Era melhor ela entrar para o mercadão para
não se resfriar, mas eu não ia dizer isso a ela.
- É
mais uma diaba querendo colocar as garras em Santa Clara.
- Ela
tem para onde ir?
-
Óbvio que tem, a boçal. Ellen descobriu que está hospedada em Alagoas faz dias,
só conseguiu falar comigo hoje.
- Ela
parece tão frágil... Não me parece muito velha, é uma menina! - Ele diz
pensativo, Pedro bate na popa para nos chamar atenção e dizer que concordava
com aquilo, e eu resolvo não dizer mais nada. Fazia anos que eu não via Simas
olhar assim para mulher nenhuma, seria bom se ele encontrasse alguém. Nem que
fosse aquela dona ambiciosa ou sua chefe aparentemente endiabrada.
O
amor muda as coisas/pessoas, não muda? Era o que diziam, vai saber... Eu não
acreditava, porém não custava ter esperanças. E se Simas passasse a ter
esperanças, eu já ficaria feliz.
***
-
Pedro disse que uma dona vestida de branco foi no porto te procurar... - Lora
me traz um prato de comida e se senta ao meu lado na mesa em frente à cabana de
Dona Silvéria. A fogueira já estava crepitando, e Roger, junto com outros
moradores músicos, já tocava seu violão como de costume, acompanhando a
cantoria.
A
traíra estava com seu colo bronzeado livre, decorado com alguns colares de
madeira que Dona Rute produzia, o decote chamativo demais em uma blusinha
florida que caía nos ombros e deixava o umbigo à mostra e suas familiares saias
até o pé.
Não
me lembro de quantas vezes já ergui aquelas saias para amá-la com força
encostado a alguma árvore, ou em nossa cama mesmo. A bicha era bonita demais,
uma pena que não prestava. Pelo menos não como parceira.
- Não
dá pra acreditar que o cara mais fofoqueiro desse lugar é mudo, não faz o menor
sentido - murmuro e ela ri.
-
Quem era?
- A
dona daquele e-mail que tu leste pra mim hoje mais cedo.
-
Sabia que ela viria. Deu algo pra tu assinar?
- Nem
tentou, a louca só latiu - digo e volto a comer o sururu dos deuses que só Dona
Silvéria fazia.
-
Inácio... - Ela baixa o tom de voz pra falar e eu sei que quer falar sobre algo
delicado demais.
- Vê
se me deixe comer, vou nem te ouvir agora, visse?
-
Cristiano está voltando. Não deu certo lá em São Paulo, ele quer voltar pra
ilha.
- Ora
essa, ele que volte. Quem está impedindo?
- Ele
teme a forma como será recebido por esse povo.
- Vai
ser recebido como merece. Tua sorte é que eu não disse a verdade pra ninguém,
senão seriam os dois desprezados pela comunidade. Está livre agora, é isso o
que te preocupa? - falo e mastigo. - Tu podes casar com ele e viver feliz para
sempre, não vou empatar vocês dois não.
- Já
te pedi perdão por isso, por causa daquela noite eu te aguento falando assim
comigo e aguento os olhares tortos de todo mundo aqui. Sabe que não é isso que
eu quero, eu não o amo.
-
Pensasse nisso antes de fazer o que fez.
-
Nunca vai me perdoar, Inácio?
- Já
perdoei, já perdoei os dois. Ele por me trair e me passar a perna e você por me
chifrar. Basta não ficar de papinho mole no meu ouvido. Se falar disso, vai
ouvir, dou-lhe uns catiripapo bem agora! Já te avisei, você fez uma escolha,
colha o que plantou - murmuro, ela assente e logo em seguida se retira.
Quando
acho que vou conseguir comer tranquilamente, a professora se aproxima e se
senta no lugar em que ela estava antes. E eu nem sabia que ela ainda estava lá.
Era praticamente novata no lugar, então perdoei o fato que havia
"esquecido" que nenhum funcionário de fora da ilha poderia ficar lá
até depois do horário. Minha casa não era bagunça.
-
Quarenta minutos, comi a comida do prato sozinha...
-
Desculpe-me, professora - digo após engolir a comida. - Eu estava com a cabeça
cheia, nem me lembrei. Sinto muito! O que ainda faz aqui?
-
Estava esperando pra conversar contigo e pegar uma carona de traineira. Me
ofereceram o favor, mas eu disse que te esperaria. Imagino que quando volta no
fim do dia, a última coisa que quer é voltar pro mar e sim descansar, no
entanto achei que por causa da mancada tu farias isso por mim para se
desculpar.
- É
espertinha... Pelo jeito acho que já estou nas suas mãos. - Sorrio e ela nega
com a cabeça.
- Não
está ainda, mas um dia quero que isso mude. - Meu
Deus, o que está acontecendo com essas mulheres?
- O
que queria falar comigo?
-
Nada, quer dizer, só queria conversar um pouco, não sei...
- Um
encontro. Um encontro romântico na hora do almoço.
-
Claro que não... - Ela ri sem jeito.
- É
sim - murmuro rindo e a professora de cabelos dourados fica com a maçã do rosto
avermelhada. - Vou te levar até o cais, deixa eu só comer mais um pouco, estou
faminto. - Ameaço me levantar, mas ela não deixa.
-
Deixe que eu pego pra você...
-
Eu... como bastante...
- Já
notei isso! - ela diz rindo e segue caminho até a mesa central de Dona
Silvéria. Tomo um gole grande de cerveja para empurrar o sururu com o olhar
zombeteiro de Roger em cima de mim e ela retorna. - Aqui. - Me oferece o prato
cheio. - Está bom?
-
Está ótimo - minto e ela sorri se sentando à mesa, só que agora de frente, e
não com os pés pra fora como estava antes.
Imediatamente
sua coxa esquerda tocou a minha e eu não entendi muito bem. A mesa tinha uns
três metros de extensão, era comunitária, ela podia muito bem se afastar um
pouquinho só para que eu pudesse comer com mais espaço e tranquilidade.
-
Quer se sentar no meu colo, professora? - Deixo escapar.
-
Claro. Agora? - ela murmura, me olha com bom humor e se afasta um pouco pedindo
desculpa. - Quer que... eu... peça para alguém me levar? Pra você poder comer
tranquilamente? - Pergunta e eu dou risada.
-
Esperou por mim até agora e já desistiu? - Olho em seus olhos e ela desvia os
dela, ainda sorrindo sem jeito.
- Não
quero ser inconveniente.
-
Fique tranquila, está muito tensa. Gosto da tua companhia!
-
Gosta?
-
Sim! Mas me conta, como estão nossas crianças?
-
Estão bem, graças a Deus.
-
Elas gostam muito de você.
- E
de você também. Todos eles querem ser como o "tio Inácio". O melhor
pescador de Santa Clara.
- Ah!
Que legal! Elas dizem isso?
-
Sim! - ela diz e eu sorrio feliz.
-
Bom, fico feliz, mas eu não sou o melhor pescador não. Simas quem é.
-
Eles não acham isso.
- É
porque não navegam conosco. - Dou risada e ela ri junto. - Se eu contar isso
pra ele, o cabra dará uma gargalhada gigante bem na minha cara.
-
Entendo! - Ri comigo e depois suspira.
Termino
a refeição, dou um beijo em Dona Silvéria para agradecer, acompanho a
professora até a sala de aula vazia para pegar sua bolsa e depois até a praia.
-
Posso te fazer uma pergunta pessoal? - Indaga quando eu lhe ofereço meu braço
para que segure.
-
Bom... pode.
- Já
tem um tempo que eu estou aqui e não vi você se relacionando com ninguém. Não
sei o que houve entre você e a Lora. Saiu do relacionamento muito machucado a
ponto de não dar espaço para ninguém mais? - Pergunta e eu nego rindo.
-
Quando disse "pergunta pessoal", não achei que seria tão pessoal
assim.
-
Desculpe, não precisa responder, obviamente.
- Só
o que vou te responder é: não me relacionei com mulher nenhuma porque não tenho
tempo pra isso. Desde que terminei com Lora foquei muito em meu trabalho, quero
trazer algumas melhorias pra ilha, acho que Dona Neide não viverá para sempre,
infelizmente, então, quero um ambulatório aqui pra gente não precisar ir até o
centro quando precisarmos consultar um médico. Acho que meus planos são outros
e eu não daria conta de ter um relacionamento legal agora. Pelo menos eu não
seria um namorado/marido cem por cento, entende? Prefiro assim do que cagar o
pau e magoar alguém legal.
-
Entendo, claro, faz todo sentido.
-
Pois então. Acho que agora não é o momento, mas com certeza ele vai chegar um
dia, afinal, não quero morrer sozinho e um homem não é nada sem uma linda
mulher ao seu lado.
-
Isso faz mais sentido ainda! - Ela garante e ri junto comigo.
- Mas
e você? Nós sabemos tão pouco a teu respeito. Me fale de você. - Eu digo
enquanto caminho ao seu lado.
Cinco
minutos é nosso trajeto da aldeia até a praia. A minha cabana ficava em uma
borda isolada, amava ter o mar como vista particular de manhã e no fim de
tarde, mas antes de construir, minha casa também ficava onde está localizada a
aldeia, um pouco mais para dentro da ilha. Quando tudo entre Lora e eu acabou,
a deixei lá e me afastei.
-
Bom, eu sou mãe...
-
Mentira! - A interrompo e ela ri afirmando.
-
Juro.
-
Qual o nome? Menino ou menina?
-
Menina. Isadora! Ela é linda, tenho uma foto aqui, quer ver?
-
Claro! Me mostre! Por que nunca trouxe a menina?
- É
muito burocrático. Não se pode trazer ninguém aqui, esqueceu?
- Ué,
mas ela é uma criança, não? E você é muito bem-vinda. Claro que não pode abusar
e trazer a família inteira, tudo o que não queremos é chamar a atenção, mesmo
porque nem temos condições de ficar fazendo o transporte da população e tudo o
mais, mas uma menina que mal faria? - digo e ela me passa a foto. A menina era
linda, a fuça todinha da professora.
- Já
tentei, ela é louca pra conhecer, tem sete anos, fala muito de vir aqui, mas...
Lora não me autorizou.
-
Pois traga, eu deixo, vou amar conhecê-la, adoro criança. - afirmo e ela fica
feliz. - E o pai dela?
-
Bom, ele mora fora, cuido dela sozinha.
- Um
patife, então! Não sabe o que está perdendo.
-
Está perdendo uma menina doce, porém bastante teimosa. - Ela sorri.
-
Crianças são assim mesmo. Houve um tempo que eu quis muito ter um moleque pra
chamar de meu. Cuidar, ensinar a pescar, a nadar... Ainda bem que tenho
Panqueca, sabe? O menino de Tico. - Ela balança a cabeça concordando. - Diga:
por que aceitou vir para esse fim de mundo?
-
Gosto daqui, gostei da proposta...
- É
um paraíso, não é? Também amo muito esse lugar.
- Não
pensa em um dia partir?
-
Jamais. Nasci, cresci e vou morrer aqui. - Ela sorri em compreensão. - Quer que
eu te leve no colo para não molhar os pés? - Pergunto assim que colocamos os
pés na areia e ela ri com gosto.
- Não
vou dizer que eu não amaria se fizesse isso, porém estou de vestido, posso
subir um pouco e molharei só as pernas. Está tudo certo, não posso ter medo de
me molhar, trabalho em uma ilha - diz rindo, tira as botas, ergue um pouco do
vestido e me acompanha.
Ergo
seu corpo da água que já batia em seus joelhos, coloco-a no barco, tiro a corda
do peso, o empurro mar adentro e subo logo em seguida.
Entro
na cabine, coloco o barco em movimento e ela se achega do meu lado.
- Me
conta uma história de pescador. - Pede de repente e eu sorrio.
- A
minha preferida é a de quando me encontrei com uma sereia. Quer ouvir?
- Ah!
Pensei que me contaria sobre quando pescou uma sardinha maior que o próprio
barco... - Ela zomba de mim. - Sereias não existem, isso não vai me distrair
durante o nosso percurso.
- Já
pesquei sardinhas gigantes, e também não é nenhuma invenção, assim como existem
alguns seres humanos que crescem demais, há animais com essa particularidade.
Agora, de tudo o que já vi e vivi nesse mar que nos cerca, a história que mais
impressionou foi a de quando vi uma sereia. Quer ouvir ou não? Eu adoro contar
essa história... - Eu adorava mesmo.
-
Quero, me conte. - Ri de novo e eu pigarreio limpando a garganta, adorava um
suspense, era pescador, ou seja, amava contar histórias.
-
Então, isso que aconteceu foi há mais ou menos um ano. Acordei como sempre às
cinco da manhã, fiz toda a minha rotina, enfim, fui tomar o café de Dona
Silvéria, me encontrei com os cabras lá, e como terminei primeiro, vim na
frente ligar o barco. Naquele dia alguma coisa aconteceu e a lancha do Tico,
mais aquela traineira negra que usávamos como reserva, haviam amanhecido sem
combustível e os galões que a gente guardava no galpão da aldeia também estavam
vazios, menos o meu barco. Nisso, eu deixei todos eles aqui para procurarem
saber o que tinha acontecido e parti para o porto sozinho, atrás de
combustível. Estava muito brabo, afinal perdemos um bom dinheiro em gasolina,
eram muitos litros estocados. Nós achamos que alguém poderia ter feito aquilo
na maldade, por isso fiquei muito fodido de raiva, mandei que resolvessem e
encontrassem o disgramento até
eu voltar e disse que quando eu voltasse, o cabra seria expulso, e eu estava
decidido. Só não fiz o que tinha planejado porque algo muito estranho
aconteceu. Eu tinha uns três dias de pescaria tranquilamente, e por estar tão
enfezado, não notei na hora e nem estava aqui quando meus amigos encontraram um
pequeno furo na mangueira. Quando eu atingi acho que metade do caminho, o motor
pifou. Eu não estava exatamente sem combustível, contudo houve algum problema,
alguma faísca, sabe? E não tive tempo de investigar, pois assim que eu saí da
cabine, me senti estranho...
-
Estranho como? - Ela pergunta curiosa. Podia não estar acreditando em mim, mas
com certeza estava gostando da história.
- Um
pouco tonto, eu acho, meio grogue. O dia ainda não tinha clareado, a marina
estava densa demais. Comecei a ouvir o canto dela logo de início e depois eu a
vi. Estava parada só com os olhos pra fora d'água, mas depois deixou aparecer o
pescoço e depois o busto quando nadou para a lateral do barco. Eu me ajoelhei
com medo, estava quase me cagando inteiro. - Ela ri. - E então, ao me aproximar
meio que sem querer realmente, sem controlar meu próprio corpo, e poder vê-la
com mais clareza, o medo se foi. Ela era linda demais, muito linda.
-
Usava concha nos seios?
-
Não. Não mesmo, ela não usava nada para tapar os seios, era linda, nem
precisava, mas... ela brilhava cintilante, a pele, sabe? Tinha um brilho como
têm as pérolas, era um brilho perolado mesmo, com uma tonalidade cintilante.
Tinha os olhos castanhos, lábios cheios e avermelhados, os cabelos estavam para
trás, mas depois que ela me puxou para a água pude ver que eram enormes e
negros.
- Ela
te puxou pra água?!
-
Sim! Puxou, sim. Eu estava ouvindo aquela cantoria, era... perfeito, era uma
música linda, e ela era tão magnífica que eu me aproximei e me deixei levar.
Ela tinha um charme como dizem as lendas, seus seios para fora d'água me
deixaram maluco, eu queria tê-la para mim, senti um desejo fodido e fora do
comum. Só sei que quando eu ameacei tocar na pele dela, ela segurou meus ombros
e me puxou pra água, no entanto não foi com brutalidade não, foi com calma, e
eu queria ir, queria que ela me levasse e não queria mais voltar. - Enquanto
falava, me lembrava daquele dia. Daquele sonho que nunca mais se repetiu. - Em
resumo, ela foi me puxando e puxando e puxando, continuei encarando sua face
que brilhava embaixo daquela aguaceira turva, e me lembro dela olhando pra
cima, na direção do barco, e quando eu repeti seu gesto, sei lá, imaginando que
ela via algo, ou alguém, vi a bola de fogo...
- O
barco explodiu. Ela te salvou...
-
Sim! Ela me salvou. O que a lenda diz é que elas nos seduzem para matar, não é?
Pois não foi o que ela fez. Ela me levou até o fundo, o máximo que pôde, e
quando o barco explodiu, assim que voltei a fitá-la embasbacado, ela beijou
minha boca, eu tentei corresponder, claro, porque não sou bobo nem nada, só que
aí acho que abri a boca demais, engoli água, me afoguei e ela desapareceu, por
isso subi à superfície e comecei a tossir, engoli muita água.
-
Final nada romântico - zomba.
- Não
acredita, não é?
-
Cadê esse barco?
- Só
sobrou isso aqui dele. - Bato no velho leme da traineira e ela sorri descrente.
- Não acredita em mim, eu compreendo. Essa história é inacreditável mesmo.
- Ela
não abriu a boca pra falar uma palavra pra você? Nem ao menos disse seu nome?
Você viu a cauda dela?
-
Disse nada, a mulher era muda. E vi a cauda sim, era azulada e brilhante como a
pele. Ela era a mulher, ou mulher metade peixe, mais linda que já vi na vida.
-
Acho que foi mais um sonho ou uma visão por causa do trauma.
-
Talvez, mas foi a visão mais linda que eu podia ter tido.
-
Você a viu novamente depois disso?
-
Não. Nunca mais, infelizmente. Porém, depois do que aconteceu eu voltei pra cá,
pro ponto onde tudo aconteceu, todos os dias durante uns quatro meses. A aldeia
inteira queria me internar em uma clínica em Alagoas, ficaram bastante
preocupados.
-
Estranho os próprios pescadores não acreditarem em você - ela observa e eu
concordo. - Eu acredito.
-
Jura? - A encaro e ela afirma com convicção. - Eu brinco assim, e quis zombar
um pouquinho de você, mas eu acho que tem muita coisa por aí nesse mundão que a
gente desconhece.
- Tem
mesmo, eu sou a prova viva de que tem.
- Mas
afinal, o que houve com os barcos? Descobriram?
-
Bom, fizeram um trabalho de mestre nas mangueiras e provocaram um vazamento
horroroso. De início eu pensava que a bendita havia feito aquilo de forma
mágica, ou sei lá, para que pudesse me pescar e me arrastar pro fundo do mar, e
o Simas por um momento quase que acreditou na minha história, afinal, ele
sempre disse que Linda, a esposa falecida dele, veio do mar também, ele dizia
isso, dizia que era um "pescador pescado por uma sereia", então
rapidinho acreditou em mim. Mas aí os meus amigos e ele decidiram vir dar uma
olhada nos destroços do naufrágio, logo não foi difícil encontrar uma bomba
caseira bem da vagabunda, fato que deixou bem claro para mim que ela não havia
feito aquilo, ela só me salvou mesmo.
-
Minha nossa! Tentaram matar você! Chamou a polícia?
-
Não. Sei quem foi. Quer dizer, não sei exatamente quem foi, mas imagino.
Naquela época eu estava em guerra com o Cristiano. Já ouviu falar no meu irmão,
certo? - pergunto e ela faz uma cara de espanto.
- Seu
irmão fez isso contigo?
- É,
então... Na época em que tudo aconteceu, eu estava em guerra com ele porque
como sempre, nós recebemos mais uma proposta de uma empreiteira nojenta para comprar
um pedaço da ilha e construir aqui acho que um hotel ou algo do tipo. Eu disse
que não, meu irmão quis aceitar a proposta, dizia que faria bem à comunidade, e
como eu já era o líder dos pescadores e da comunidade, ele teve que aceitar que
eu jamais faria aquilo. Só que no dia anterior ele deu o número do escritório
para os caras, e um deles me ligou. Primeiro quis tentar me ganhar na conversa,
com dinheiro, mas depois se enfezou e me ameaçou. Eu já esperava que um dia
topasse com gente perigosa e gananciosa, só não achei que seria tanto a ponto
de ameaçar a minha vida, né? Afinal, comigo morto, rapidinho eles se apossariam
desse lugar, assim que eu batesse as botas Cristiano assumiria, e aquele cara é
fissurado em verdinhas. Por isso ele foi expulso, depois de ter negado de pé
junto que não tinha envolvimento com nada daquilo, quase acreditei, mas aí
peguei ele e Lora juntos e obviamente no momento da briga ele jogou na minha
cara que fez aquilo mesmo, que autorizou a entrada dos caras e deu o nosso número,
mas claro, disse que não tinha nada a ver com a bomba. Juntei tudo e o obriguei
a partir, disse que iria pra me dar um tempo, mas que voltaria porque a ilha,
afinal, também era dele, ele tinha direitos.
-
Nossa, e nem a polícia vocês chamaram?
-
Assim como não quero gente de fora metida nessa ilha, também não quero a
polícia e nem autoridade nenhuma, professora. A ganância desse povo pode
destruir uma das últimas ilhas preservadas de Alagoas. Já foram quase todas pro
saco, a Patacho é um exemplo disso.
- Por
que a prefeitura não pode fazer com Santa Clara o que fez com todas elas? Tipo,
autorizar a venda de alguns hectares para investir no turismo? - ela pergunta,
me analisa e eu sorrio.
- O
papo não era sobre a história de pescador que eu tinha pra contar?
- Não
confia em mim, é?
- Eu
confio, entretanto estamos fugindo do assunto principal e... Chegamos. Você
está entregue. - Sorrio ao atracar o barco e ela suspira.
- No
fim nem conversamos sobre o que eu queria. - A professora charmosa balança o
corpo como se rodasse uma saia e passa a mão nos cabelos escorridos.
- E
sobre o que queria falar? - pergunto, ela invade meu espaço pessoal e eu me
afasto involuntariamente. - Não dá. A mulher que estou esperando chegar não é
você - falo de uma vez deixando escapar e me sinto mal.
-
Desculpe.
- Eu
que peço desculpas. Você é um mulherão, é linda, só que não é você, sinto
muito.
- Não
sinta. Sei levar foras muito bem, estou bem acostumada.
- Ah!
Que grande bobagem! Se estiver levando tantos foras assim, com certeza só está
se interessando pelos errados, como agora, por mim.
-
Bom, pois é o que parece. Preciso rever meus conceitos.
-
Precisa é abrir esses olhões azuis. Desde o dia que colocou esse traseiro lindo
pra jogo, arrebatou todos os corações solitários da ilha. Roger que o diga, sei
que vocês se divertem de vez em quando e ele gosta bastante da senhorita,
principalmente de seus predicados - digo e ela sorri negando. - Você é linda,
inteligente, maravilhosa, merece e precisa ser amada e correspondida, portanto
não perca tempo comigo, professora. Te garanto que se eu não estivesse iludido
com a minha vida amorosa, te pegava e não soltava nunca mais, encheria você de
filhos, e viveríamos naquela ilha como Richard e Emmeline. - Ela ri com gosto.
Podia apostar que eu nunca tivesse assistido "A lagoa azul", mas sim,
acreditem, eu tinha uma TV naquele mundo selvagem. Uma TV, um DVD, um rádio... Sorrio com o pensamento.
-
Então se não estivesse nessa fase chata, ficaria comigo... Me acha bonita?
- Eu
te acho a mulher mais linda daquela ilha.
- Pensei
que Lora fosse a mais linda.
- A
beleza não vem só de fora, muito pelo contrário, tem que ter um equilíbrio,
senão não adianta. Tu és mil vezes mais bonita que ela tanto por fora quanto
por dentro, de verdade, e esqueça aquela mulher porque eu já esqueci tem muito
tempo, visse?
-
Obrigada, pescador. - Ela sorri passando a mão em minha face. Meu Deus, eu precisava fazer a barba. -
Pelo cuidado comigo, por ser gentil, por ter me trazido, contado sua
história... Acho que pelo menos espaço para uma amiga na tua vida você tem,
certo? - Ela diz com simpatia, embora ainda triste.
-
Para ser amiga, eu tenho um espaço exclusivo pra você! Te trago pra casa, te
busco, te conto histórias até o dia nascer, ensino Isadora a nadar e qualquer
coisa que precise. Não sendo alguma parte de meu corpo sarado e queimado de
sol, estarei aqui - murmuro, ela sorri, ganho um abraço carinhoso e, quando ela
se vai, me sinto estranho.
Eu
era um cara solteiro, modéstia à parte bonito, chamava atenção da mulherada, e
bom, eu ainda era jovem. Podia ter aproveitado a oportunidade e traçado a
professora ali mesmo. Éramos dois adultos, sozinhos, com certeza carentes, por que eu não beijei a professora?
Bom,
decerto não era ela.
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